05 dezembro 2007

Brincadeiras de Menino

Quirino um dia ser Jessier, mas um Jessier menino.

Como eu era o caçula e o mais tímido dos quatro, nem sempre brincava de tudo. Era magro, parecia um tamanco, só se via o couro e o pau. Em certas brincadeiras eu ficava era quieto, feito ajudante de missa. Como não vivenciava tudo, navegava nas conversas de quem as praticava. Nessa área, eu era uma espécie de moleque autônomo, pesquisador de presepadas no meio dos meninos da Palmeira: fazedores de arte, botadores de circunflexo em cocô ou nação do desassossego.

Campina Grande tinha as mesmas coisas de toda cidade pequena: as mesmas quengas, os mesmos baitôlas, aluados, aleijados, cachaceiros...Um caminhão velho enferrujado perto duma sucata, um campinho de pelada, um mato perto de casa, um açude bom de banho, casarão mal-assombrado, um muro intransponível e um sítio bom de goiaba. Era exatamente nesse território de sabor provocativo que desembocava boa parte da farra da gente – isso depois de tirar a farda do colégio, claro. Em seguida meu cumpade, era descobrir Américas e fofar felicidade.

Invariavelmente eram traquinagens amaldiçoadas feito moedas de Judas e giravam em torno de: perturbar um doido a poder de apelido, estumar um cachorro brabo, levar carreira de vigia, judiar com bicho de rua, cavucar um ferro velho, dar um bombaço com o "quichute" no portão de uma coroa enjoada e disparar, derrubar a lata de lixo dum velhote ignorante, esperar a saída do Colégio das Damas, "cair de mão" olhando uma mulher tomar banho, mulherizar as jumentinhas e as coitadas das galinhas, dar uma dedada num bunda mole, passar xêxo em cabaré, fazer uma rodada de putaria de menino, ver desenhos de mulher nua, mijar nas próprias pernas pra aliviar queimadura de urtiga, dar um tostão no joelho dum, roubar goiaba em casa alheia, morcegar caminhão, dar uma vaia em caga-lona, fazer um serra-velho na porta duma véa enjoada em sábado de aleluia, roubar um judas, dançar num forró de bairro, tirar um burdão em lotação, entrar em embuança de peladeiros, andar atrás de palhaço pra entrar de graça no circo, andar e perturbar em fila indiana dentro de comício, negociar em feira de gibi etc. Eu, soldado raso, não comandei nenhuma dessas batalhas - meu irmão Léo já era o Che Guevara e Paulo Mocó o Fidel Castro do sistema - mas dei lá minhas revoluçadas.

Naquela época era assim: tinha dia de lavar e encerar a casa. Ah meu cumpade! Como se lavava e se encerava casa! Jogar água e sabão era brincadeira. Enxugar e encerar eram castigo. Tinha o dia da novena, dia de fazer visita... E tinha também as safras de brincadeiras. Era tempo de pinhão, de bola de gude, de jogo de botão, de yôyô, de patinete, de figurinha, de soltar bomba, de mela-mela... Tinha até tempo de tanajura. Era pegar tanajura, tomar banho de chuva, fazer barragem no aguaceiro da rua pegar sapinho e pescar guarú... Brincadeira obrigatória como qualquer outra.

Havia as brincadeiras diurnas e noturnas. Algumas pareciam feira de cavalo, só tinha homem e eram arrochadas feito cunhão de toureiro. Exemplo: Fazer guerra de carrapateira, guerra de torrão, bater pelada -um barra a barra ou carimbada, brincar de luta, livre, de faroeste, lutar espada, andar em cima de muro, queimar peido com fósforo, fazer concurso de mijada, correr de carro de rolimã, subir em pé de coco e de mamão... As mais leves eram: andar de bicicleta, fazer balinheira com gancho de goiabeira ou banlinheira de dedo com liguinhas de borracha, pedir à mãe pra fazer bisaco, caçar passarinho, batucar numa lata pra ressuscitar o bichinho, tocaiar um bicho no capim, apostar carreira, virar bunda-canástica, acompanhar uma boiada, sapatear um quarador de roupa, tomar banho de mangueira, brincar de circo, fazer alma em oco de mamão verde, tirar o selo no quengo dum, jogar casca de laranja nos caibros pra enganchar, chupar cana com o caldo descendo no bucho, fazer ginástica -barra e apoio de frente, se esconder atrás de moita, derrubar enxu com vara, torar rabo de lagartixa, fazer armadilha no chão, andar de cavalo de vara, dirigir com tampa de panela, brincar com roda de aro ou com pneu, espetar no chão ferrinho de ABC, soltar coruja, brincar de toca, de garrafão, de academia, puxar rolo de lata de leite, ir pra fábrica de picolé, pegar mosca com a mão, brincar com minhoca e adivinhão, dar peteleco em ureão, se intrigar e pedir penico, aprender a assobiar, brincar de dinheiro de cigarro, colecionar boneco de Toody, fazer botão e anel de coco-macaíba, fazer botão de baquelita, fabricar carro de lata, dar banho no cachorro em açude...

Por falar em banho no açude, tinha uma cena interessante: eram as tradicionais lavagens de caminhão em beira de açude nos domingos de manhã. Eram aqueles GMC, Fê-nê-mê e Chevrolet de capou aberto em formato de crocodilo... O óleo formando cores de arco-íres nas águas e a meninada pinotando das carrocerias com seus corpos pelados feito sovaco de santo.

Até na hora do almoço e jantar brincava-se: Era fazer capitão de feijão e farinha, tocar tarol com talher, botar um umbu na boca pra dizer que era um lubim, fazer boneco com casca de melancia e conversar merda picando cisco de pão com uma faca.

As brincadeiras noturnas eram mais leves: Afora os pipocos das bombas-navio do dia de São João, onde o pavio era pouco e a vontade era muita, a maioria das brincadeiras eram: os tradicionais jogos: botão, dominó,baralho, ping-pong e também álbum de figurinha, brincar de drama, de anel, tocar violão, ouvir disco em radiola, dar uma dançadinha, fazer um bacurau com nação do desassossego e mentir.

As únicas coisas que me atormentavam eram: ir pra aula de catecismo, provar costura alinhavada, vestir a farda, tomar injeção e esfregar o grude com bucha do mato.

Êta nação amolestada do desassossego! Êta meninos feios da bexiga-lixa! Ô tempo besteirento duma figa! De brincadeiras sem graça! Sorte têm os meninos de hoje, com videogame cama e televisão!

Jessier Quirino
www.jessierquirino.com.br



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