As lembranças que tenho do mar são todas gratificantes. Vivendo em Capital litorânea, via as águas do mar por todo lado, com seus grandes lençóis de areia branca. Ele estava nas conversas, nos sonhos, no cotidiano durante o dia e na escuridão da noite, barulhando, a maré enchendo e secando, o mar com seus sargaços amargos, seus barcos ondulando, e sua grandiosidade que esmaga.
O mar... O mar... O mar - grandioso mar - das vilas dos pescadores, do peixe fresco exposto nas calçadas, dividia uma linha de horizonte que se estendia pra lá de toda e qualquer imaginação. Quando criança, a visão do mar dava-me a condição de impotência diante de Deus, sendo eu somente um grãozinho de areia perdido no universo. Mas, depois que cresci, passou a ter outra conotação. Ele era o ponto final das farras do nosso grupo de adolescentes e intelectuais que rodavam todos os bares da cidade, indo desaguar urinas, versos e orgasmos pelas madrugadas, na escuridão da Praia de Tambaú.
Quando não existiam ali hotéis e pousadas, Tambaú era uma praia selvagem onde conviviam, pacificamente, os pescadores com suas redes de pescar, seus barcos a vela precários, e uma elite privilegiada que vivia trancafiada nas mansões. Durante a noite, vinha a solidão. Nesse tempo, Tambaú não tinha turistas ou edifícios nas proximidades, e muito menos hotéis de cinco estrelas, e seu único restaurante conhecido era o Elite Bar. Durante o dia, as pessoas pobres se misturavam com as ricas, sem problemas, pisando o chão de terra batida ou nos banhos de mar. À noite, somente os pescadores, em sua labuta incansável, tomavam conta da areia, à beira-mar, contando estórias sem fim. Era com estes que a gente se misturava, ouvindo canções de marinheiros e dividindo garrafas de cachaça e litros de rum Montilla, misturados com Coca-Cola, que nos levavam à embriaguês e à suprema felicidade.
Nesse cenário luxuriante, sobravam poemas, músicas inesquecíveis em serenatas em homenagem ao nada, e muita trepidação dos atos sexuais proibidos, desafiando a moral, os bons costumes, e a perseguição oficial. Dormíamos na areia o sono dos humildes, sob a guarda discreta dos velhos pescadores, despertando pela manhã com o sol explodindo na cabeça, cansados e felizes, sem compromisso, e irremediavelmente apaixonados.
A embriaguês de nossa juventude invadia a cidade, e as sessões de luar na Praia de Tambaú repercutiam durante a semana toda, enquanto nossa turma se trancava em quartos pequenos e apertados para exercer a sublime vocação de poetas e donos do mundo. Resultavam disso gavetas e mais gavetas apinhadas de originais, as palavras cambaleando, ainda impuras e desorganizadas, e nenhuma obra publicada. Formávamos, assim, um pequeno batalhão de autores desconhecidos, todos inéditos, ingênuos sonhadores, querendo mudar o mundo sem saber como, famintos de amor, e incapazes de administrar o caos. Eu era a única representante feminina do grupo, musa inspiradora e símbolo sexual de todos aqueles rapazes. Feito a Maria Bonita do bando de Lampião.
Como coroação de nossa sede de viver, redigimos e assinamos o "Manifesto da Dissipação", elegendo Antonioni como o maior cineasta do mundo, por seu filme "A doce vida", e propondo a todos os que nos lessem e nos ouvissem a subversão da moral, uma vez que a subversão política estava banida do País por decretos governamentais.
Quando as noites de Tambaú eram apenas lembrança, e a solidão já pesava, depois que a vida nos separou, uns cassados, outros caçados e presos nos porões da Ditadura Militar, eu restei sozinha diante dos impasses. Não tinha mais noites enluaradas, serenatas, poemas na madrugada ou felicidade. Eu estava no centro da cidade, nauseada, me sentindo mal, e achei que ia morrer.
Não sei por que, ao invés de procurar ajuda médica imediata, tomei um ônibus na direção da Praia de Tambaú e lá sentei-me num banquinho rústico de frente para o mar, onde iniciei um longo e solene discurso de despedida. Era de novo criança, indefesa diante do inexorável. Rezei, naquele momento, uma oração inesquecível, lembrando minha trajetória até ali, cheia de percalços e sacrifícios, sonhos e frustrações, falando sobre a tragédia do mundo, que era também a minha, no meu desespero e na minha vida que perdera o sentido.
À medida que o discurso avançava em pensamento, de olhos fixos na imensidão do mar e na linha do horizonte, que ia ficando cada vez mais distante, mais me abatia o patético da minha condição. Encontrei ali algumas pessoas conhecidas, que falavam comigo e eu não podia entender o que diziam.
Que idioma usavam para se comunicar? Seria Grego? Inglês Arcaico? Ou Latim... Por que eram apenas duas horas da tarde e o mundo estava escurecendo, como se a noite chegasse?
Tanto já estava escurecendo que se apagou de vez e eu não vi mais nada. Quando me acordei, saindo do prolongado estado de coma, estava na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, vítima da desidratação, da tristeza e da saudade... Por falar nisso, eu nunca mais vi o mar.
A última notícia que me chegou dele é que as águas poluídas da Praia de Tambaú estão impróprias para o banho, segundo boletim divulgado pela Sudema.
Maria José Limeira
(Do livro "Memórias", Volume I)
Texto lindo!!! maravilhoso tocante, verdadeiro,
ResponderExcluirMuito bom mesmo vale a pena ler e reler
Dalinha Catunda
Putz...realmente muito tocante.
ResponderExcluirBelíssimo texto!
Não vivi na época mas Tambaú hoje em dia realmente não é lá um lugar tão sadio como me pareceu ao ler o texto.
Porém as águas, até onde sei, não estão impróprias para banho. Não são o exemplo de limpeza, mas dá pra tomar um banhozinho de vez em quando...
Ainda assim, é uma bela praia onde a preguiça de levantar cedo é paga com a beleza na caminhada pela orla!
Belo texto ^^