09 junho 2020

Turbina

Chamavam-no Turbina... Era magro, pequeno, rosto encovado, e muito pouco atraente! Mas com uma bola no pé, era um demônio encarnado!... Graças aos seus toques mágicos, chutes certeiros e dribles desconcertantes, o UVA (União de Vila Arapiraca) fora tantas vezes campeão do
Campeonato Amador do subúrbio...

Ah, quem, ali, não se lembrava, saudoso, daqueles jogos memoráveis? A final do campeonato de 2012, por exemplo, entre o UVA e o Corinthians de Vila Pavão... O jogo estava “pau-a-pau”, bola correndo para lá e para cá, o “0 x 0” parecia inevitável, e eis que, aos 42 do segundo tempo, o Turbina recebeu no bico da área, fez que ia bater e cortou para a esquerda; o zagueiro quase quebrou a
espinha! Pois o Turbina ainda se deu ao luxo de enfrentar o goleiro, dribla-lo como quis, e entrar “com bola e tudo”... Foi demais!

E a final de ’13, então? O Turbina me aparece no dia do jogo, com um “narigão” deste
tamanho, todo vermelho, dizendo que estava gripado, e pediu para entrar só no segundo tempo... O
técnico deixou, meio a contragosto, mas, afinal, craque é craque! Pois não é que o UVA levou dois gols do Mossoró, de Vila Indaiá, e o técnico teve que implorar pro Turbina entrar... Ele se levantou,
calmamente, com o olhar meio pesado, e foi pro jogo... Ah, foram três lances: uma falta bem cobrada,
uma cabeçada certeira, após um escanteio, e uma arrancada fulminante em contra-ataque, e olha o UVA bicampeão, “3 x 2”, na maior!

E só não foi “tri”, porque o Turbina não jogou a final de ’14, novamente contra o
Mossoró, dizendo que era aniversário de sua avó, que morava em uma cidade vizinha, e seria uma
desfeita muito grande deixar de ir, para jogar futebol...

Esse é o Turbina; gente finíssima, boa praça, ótimo amigo... Só tem um defeito: é ateu!
E ateu convicto! Pra ele, Deus é o gol, a bíblia era a bola, e a única religião que conhece é seu emprego de
pedreiro, que lhe ocupa toda a semana... Mas, também, ninguém é perfeito, não é? E também, porque se
ligar em detalhes, se o UVA está novamente na final do campeonato, depois de uma campanha brilhante,
invicta, com um único empate, e catorze vitórias, sendo seis por goleada (inclusive um humilhante “13 x
0”, contra o pobre São Luiz, de Jardim Osório, com sete gols do Turbina)... Agora, basta um empate, no
domingo, para levantar o “caneco”... E vai ser um jogão, afinal o adversário é o poderoso Estrela, da Vila
Paraíso, justamente o time que arrancara o empate contra o UVA na fase de classificação (mas no campo

deles, é claro!), e que fora, inclusive, o campeão do ano passado, tudo por causa de um juizinho sem-
vergonha que – pasmem! – tivera a coragem de expulsar o Turbina de campo, ainda no primeiro tempo,

apenas por ele ter reclamado “um pouquinho” de uma falta não-assinalada, e que ele com certeza
sofrera... Ah, mas, nesse ano, nada impediria o UVA de ser campeão novamente; ainda mais com o
Turbina em forma, devidamente consultado sobre as datas de aniversário de seus familiares, e sendo
tratado, toda a semana, como um príncipe!...
E no sábado, olha o Turbina concentrado, sentado tranqüilamente na varanda da casa em
que reside (e que ele mesmo ajudara a construir), em companhia de sua mãe, uma sergipana viúva, forte e
decidida. E ela, como toda mãe, fazia de tudo para agradar o filho:

- Hermógenes (vocês só conheciam ele por Turbina, não é?), tu comeu bem, filho? Olha,
se tu quiser, eu faço um docinho de goiaba, pra te deixar satisfeito, quer não?

- Não, mãinha, eu tenho que ‘tá em forma, pra amanhã... O pessoal ‘tá contando

comigo!
- E eu não sei? Mas saco vazio não pára em pé, sabe não? Então, é bom tu comer, filho...
- Eu ‘tô bem, mãinha... O que eu preciso é treinar um bocadinho, pra relaxar...

E apesar dos resmungos da mãe, lá vai o Turbina pro quintal, com uma bola debaixo do

braço, brincar de “balãozinho”... E lá vai um, dois, e...
- “Ops, escapou!”, pensou.
Vamos de novo! É um, dois...
- “Ué, escapou de novo!”

Outra vez! Um, dois, três e... e a bola escapou-lhe novamente dos pés e rolou,

caprichosamente, para longe, como que desfazendo dele...

O suor começou a pingar frio de sua testa! Como era possível? Ele, Turbina, o herói da
Vila Arapiraca, o Demolidor, o “Pelé Sergipano”, como o dizia o “Mané Português”, não dar mais que
dois ou três “balãozinho”? Não, não pode ser, deve ter algo de errado! E novamente ele tentou, e de novo,
e outra vez, e por fim, quedou-se ante a triste realidade: não era mais o mesmo! A bola já não o obedecia
mais como antigamente... Será que estava ficando velho? Não, não podia ser; afinal, estava apenas com
trinta e quatro anos e... E com trinta e quatro anos, o Pelé já tinha abandonado o futebol, não tinha? E o
Zico, que abandonara com trinta e dois anos? Ou seria com trinta e seis? Não importa! O que importa
realmente, que o deixava estarrecido, é que se deparara com um fato que, até então, ignorara: estava
ficando velho! O peso dos anos estava fazendo com que...
- Tudo bem aí, Turbina?

Assustou-se e olhou depressa pro lado, era o Pedrinho, seu reserva direto no time, que
passava ali perto e o cumprimentava... Ou será que não? Será que ele o vira fracassar na sua tentativa de
dominar a bola? Será que, por dentro, estava rindo-se dele, e de olho no seu lugar no time?

- Estou bem, sim, porque?
- Por nada, perguntei por perguntar... Tchau!
Foi-se... Graças a Deus! Deus?! Que que eu ‘tô falando, ‘tô ficando doido, ou então velho,
mesmo, vou ter que abandonar o time, vou... Calma! Nada de desespero! Tudo que eu tenho de fazer é
esconder esse fato por enquanto... Mas a final é amanhã! Calma! Eu só preciso descansar... Até amanhã,
eu dou um jeito!...

E assim, Turbina recolheu-se, pensativo, ao seu quarto, para espanto de sua mãe, que
nunca vira o filho deitar-se antes das nove ou dez horas, e não eram nem sete e meia, ainda! Porém, o
outro dia era dia de final de campeonato, e dona Luzia sabia que seu filho era o craque do time, e craque
tinha direito de ser esquisito, não tem?...

E eis que chegou o grande dia! A encosta do morro do Veado parecia pequena, pra tanta

gente que queria ver o jogo, que seria realizado no campinho, situado aos pés do morro...

Uma bandinha, improvisada com os instrumentos de uso da escola de samba local,
aumentava ainda mais a algazarra feita pela ruidosa torcida... Vendedores diversos gritavam seus bordões,
alguns torcedores mais exaltados soltavam rojões, e dezenas de crianças corriam por todos os lados! Uma

loucura, linda de se ver...

E olha lá o árbitro do jogo! Claro, só podia ser o Diogo, um espanholão enorme, operário
de uma montadora de automóveis, obviamente, a pessoa mais indicada para apitar o jogo; afinal, o árbitro
tem que impor respeito, e o Diogo, do alto dos seus 40 anos e 1,90 metros, parecia do tamanho do próprio
morro, de tão imponente...

E olha lá o Estrela, entrando em campo, com aquele uniformezinho brega, vermelho e azul,

com toda a pinta que iriam se sair bem... Coitados, que ficassem naquela ilusão!

E olha lá o UVA, saindo detrás do morro e adentrando no gramado! A torcida delira, grita,
esperneia... O pessoal da bandinha se esforça ao máximo para superar a balbúrdia, mas em vão...
E olha lá, fechando a fila: é o TURBINA! Franzino, porém, gigantesco! A torcida quase
derruba o morro!! Máquinas fotográficas estalavam os “flashes”, crianças puxavam sua camisa, e até
mesmo algumas moças mais corajosas – já que o pobre Hermógenes era bem “mal-feitinho”- se derretiam
em sorrisos... O Juvenal, que tocava o bumbo naquele momento, chegou a furar o dito-cujo, aos gritos de
“Dá-lhe, Turbina!”...

Porém, ninguém percebeu a insegurança presente nos sofridos olhos do nosso herói...
Conseguiria ele corresponder a tudo isso? Afinal, na véspera... Ah, também, para que se preocupar; a
véspera fora apenas um dia ruim, uma bobagem! Hoje é um novo dia! Vida nova, bola pra frente! Ele ia
arrasar, tinha certeza! E, abrindo um largo sorriso, começou a retribuir aos acenos do público, o seu
público... Porém, precavido, procurou manter-se afastado da bola, até o início do jogo...

Bola no centro! Tudo em ordem! Vai começar! O Diogo olha pra um lado, para o outro,

rosna alguma coisa, e apita! ‘Tá valendo!...

A bola, escrava irrequieta de pés habilidosos, passava e repassava em todos os cantos do
gramado... Aliás, gramado, era modo de dizer; em alguns pontos, mais parecia uma floresta! Em outros,
era terra, pura! Mas, justiça seja feita: o trecho próximo às bandeirinhas de escanteio estava perfeito!...
Não demorou muito, e a bola acabou chegando aos pés do Turbina... Discretamente, ele
apenas a tocou para outro companheiro, a alguns passos de distância... Corre o jogo; cinco minutos, dez,
quinze, e de repente, numa falha imperdoável da defesa do Estrela, a bola sobrou para o Turbina, quase na
risca da grande área, um pouco pra esquerda... Deu pra sentir falta de ar, quando praticamente todos, na
“geral”, prenderam a respiração! Porém, o chute saiu mascado, e a bola rolou mansa para os braços do
goleiro Manteiga... Tudo bem, foi só o primeiro chute, ia ter mais, esperem pra ver! E o jogo correndo...
Aos vinte e oito minutos, o “zagueirão” Sabino derrubou o atacante Miltão, do UVA, nas
proximidades da área... Era “no tipo” pro Turbina bater! A torcida do Estrela calou-se; a do UVA
explodiu! Manteiga engoliu em seco, e tratou logo de armar uma barreira com cinco jogadores...
E lá vai o Turbina, arrumando a bola, tomando distância, e esperando a autorização do

Diogo, que já estava até meio que virado pro meio do campo, a espera do gol iminente...

Autorizado! Turbina correu, bateu e... e a bola subiu uns dez metros, indo cair pra lá do
barraco do Gomes, que não era muito perto, não! Houve um certo silêncio, meio que forçado, um certo
constrangimento, mas tudo bem! Craque também erra, não é mesmo? Vamos em frente!...

Fora uma falta mais violenta, que virou um “bate-boca” entre o volante Alcir, do UVA, e o
meia Juquinha, do Estrela, e rendeu um cartão amarelo pra cada, o primeiro tempo arrastou-se sem
emoções até o final, mantendo-se em “0 x 0”...

No vestiário, improvisado com alguns caixotes empilhados, os outros integrantes do time

do UVA estava certo que o Turbina estava “se guardando”, para o segundo tempo... Ou, pelo menos,
todos esperavam que fosse isso! O técnico, “Mané Português”, até achou melhor deixar o rapaz em paz,
descansando, e resolveu dar bronca no coitado do lateral esquerdo, um negrinho espigado, chamado
carinhosamente de “Fumaça”, dizendo que ele estava “fazendo corpo mole”, e exigindo que ele corresse
mais... “- É”, pensou o Mané, “deixa o Turbina se concentrar”...

Contudo, entre os jogadores do Estrela, do outro lado do campo, o comentário, ainda que

em tom baixo, era outro:

- Eu tenho certeza que aquele tal Turbina ‘tá com medo de pegar na bola! Ela passou perto

dele umas três vezes, e ele, ó, nem te ligo...

- Eu senti que ele parece estar, sei lá, com cara de medo! O cara já é feio, com aquele olhar

de choro, então...

- Pois eu ‘tô achando que nós ‘tava com medo à toa! O cara não é de nada!
- Eu vou te contar: se esse tal Turbina se engraçar pro meu lado, dou-lhe um safanão, que

jogo ele fora do campo, mais forte do que eu já dei ano passado!...

O técnico do Estrela, um rapazote de 31 anos, chamado Norival, de cabelos despenteados,
óculos de grau, e que “herdara” o cargo do pai, um ex-sargento do exército, aposentado, que não pudera
vir, pois sofrera uma operação de ponte de safena, e encontrava-se em convalescença, viu ali uma
oportunidade de ouro! Os jogadores estavam acreditando que podiam ganhar, e ele tratou de incentivar
isso:

- É isso, gente! Essa história de craque é tudo mentira! Vocês acham que um magrelo
feioso daqueles era tudo aquilo que vocês ouviram? Olha só, Sabino, ele bate no teu umbigo, cara! ‘Cê
vai ter medo dele?...

E todos riram, satisfeitos, mentalizando o que fariam no segundo tempo...
Bola rolando! O segundo tempo começou como no primeiro: debaixo de muito barulho!
Mas o time do Estrela parecia mais aceso... Logo aos três minutos, o ponta Tatu passou como quis pelo
pobre Fumaça, foi à linha de fundo e cruzou, para uma forte cabeçada do centroavante Rodinaldo, o
goleiro Natal,do UVA, conseguiu defender, mandando para escanteio... O “Mané Português” quase entrou
em campo, para bater no seu jogador, e ficou um bom tempo gritando com seu lateral, que parecia querer
se esconder da fúria do seu treinador, mas não achava onde!

Aos dez minutos, Lindomar arriscou de longe e a bola explodiu no travessão, para alívio
do Natal e de toda a torcida do UVA presente... Esta estava impaciente, o time parecia perdido em campo,
ninguém acertava nada! Os torcedores perceberam que precisavam fazer alguma coisa, e tentaram gritar
ainda mais alto! Porém, aos vinte minutos, veio o tiro de misericórdia: Turbina perdeu uma bola
dominada, na intermediária, por lateral Castor, que lançou Rodinaldo, lá na frente... Este recebeu a bola,
balançou o corpo pra direita e cortou pra esquerda, derrubando sentado o zagueiro Osvaldir, e rolou na
frente para Juquinha, que ameaçou chutar e tocou, um pouco atrás, para o volante Lilico, que, vendo a
“moleza” em que o jogo se transformara, arriscara uma subida ao ataque, e só teve o trabalho de tocar
para o fundo das redes... Gol do Estrela! O “Mané” quase comeu o boné que usava, de raiva! Esbravejou,
xingou os jogadores, e lançou um olhar pro Turbina, que eu vou te contar... Que ele estivesse “se
guardando”, tudo bem, mas dormir em campo, era demais!...

Enquanto isto, a torcida do Estrela fazia a festa! Eles, que praticamente tiveram que

emudecer ante o arrojo da torcida adversária, agora abriam um berreiro ensurdecedor... Muitos não
podiam crer no que viam: o morro do Veado, reduto tradicional do verde e branco do UVA, naquele
momento era quase todo vermelho e azul!... O “seu” Laurindo, um dos torcedores-símbolo do time (fora
ele que doara o uniforme verde e branco, já que tinha o coração palmeirense), chorava, com olhar
assustado... “Dona” Higina, mãe do Alcir, rezava, sentindo o coração bater a mil... Todos estavam
pasmos, e a única reação que lhes ocorria era olharem para o Turbina, que, coitado, não sabia o que
fazer... Será que ninguém se dava conta que o time era composto de onze jogadores, e não apenas dele?
Começaram a surgir algumas vaias, tímidas, no começo, mas que foram aumentando de intensidade,
gradualmente...

Um tanto desanimados, os jogadores do UVA deram nova saída, e o Turbina, doido para
sair daquela situação, e mostrar a todos que eles estavam errados, tomou a bola e partiu pro ataque, com
raiva! Passou por um, por dois... A torcida animou-se, novamente! Esse era o Turbina que todos
conheciam! Agora, não tinha como par...

Silêncio...
O Turbina acabara de tropeçar, sozinho, na bola... Caíra e ficara lá estirado, a própria
imagem da derrota... E o time do Estrela partira em rápido contra-ataque, que só não resultou em gol
graças, novamente, a um milagre do goleiro Natal...

Pobre Turbina! Estava se levantando, cabisbaixo, quando o central do Estrela, um negrão
enorme, com o singelo apelido de “Montanha”, deu-lhe um cutucão no tornozelo, derrubando-o
novamente... E ainda saiu debochando de seu infortúnio!

Pobre Turbina! Queria, naquele momento, estar morto! Centenas de olhares estavam
cravados nele, como que acusando-o publicamente de ser responsável por aquela derrota! Ele, só ele!
Levantou-se, taciturno, e foi até a beira do gramado, pedindo ao técnico para substituí-lo... Mas o
“Mané”, talvez comovido com sua situação, ou talvez por não ter, no banco, nenhum milagreiro, disse-lhe
que confiava nele, e que ele deveria voltar e dar o melhor de si... Quando o Turbina voltou-se para o
gramado, “Mané” ainda acrescentou:

- E quem sabe, reze um pouco, pras coisas se assentarem...
Rezar! Logo ele, que, ao que se lembrasse, nunca entrara em uma igreja, depois do
batismo, e nem ao menos sabia o “Pai-Nosso”, direito! Pra quê, se até aquele momento vivera muito bem
sem aquilo?

Olhou em volta e percebeu que o time estava mesmo entregue! O máximo que seus
companheiros conseguiam era se defender, como desse... E olha que até isso estava difícil, tal o estado de
ânimo do Estrela!...

E assim o tempo foi se escoando... Vinte e cinco minutos, trinta, trinta e cinco, e a torcida
do UVA já vaiava a plenos pulmões, xingando os jogadores... Até que, quando o Turbina errou mais um
passe, alguém gritou:

- Tira esse perna-de-pau daí! – e a partir daí, toda a torcida começou a execrá-lo, a pedir
sua cabeça... Era uma cena dantesca, ver uma massa que o aplaudia, minutos antes, voltar-se tão
violentamente contra ele...

Mas ainda havia um fio de esperança! Afinal, bastava o empate para dar o título pro UVA!
E foi com isso em mente, que o Turbina passou a avisar seus companheiros que, na primeira
oportunidade, partiriam todos em bloco, tentando o gol salvador...

E a oportunidade surgiu: aos 43 minutos, o goleiro Manteiga não segurou um chute até

despretensioso de Tiãozinho, e cedeu um escanteio para o UVA...

O Turbina assumiu as rédeas do time, e deu ordem para todos se posicionarem,
estrategicamente distribuídos, de modo que não “embolassem” na área, o que favoreceria a defesa... Ele
próprio foi colocar-se na meia-lua adversária, um pouco à direita, sabendo que, se não aproveitassem
aquela chance, tudo estaria perdido...

Num rasgo de inspiração, volveu os olhos para o céu, e quase que inconscientemente,

pensou:

“- Deus do Céu, se ainda há salvação para um cabra da peste como eu, me perdoa, Senhor!
Mostra que ainda posso me redimir, e me concede só uma única dádiva: um golzinho, meu Deus; pode ser
simplezinho, não ligo... Eu me arrependo, meu Deus!”

Aquele pensamento o surpreendeu, e ao mesmo tempo, reconfortou; e foi com um

estranho, porém decidido brilho no olhar, que esperou a cobrança do escanteio...

Por sua vez, o Fumaça era justamente o oposto do Turbina: há vários minutos, rezava sem
parar, e nesse momento, estava arrumando a bola para a cobrança, e pensando o que fazer: bater rasteira,
com força, jogar alta, no “segundo pau”, ou tentar jogar para alguém em especial... Como todos do time, a
confiança que ele depositava no nosso herói era quase inabalável, e já que não tinham muito tempo, e as

coisas já estavam mal, achou que o melhor era tentar jogar para ele, e fosse o que Deus quisesse! Afastou-
se dois ou três passos, olhou e viu que a área próxima ao gol estava apinhada de gente, mas, curiosamente

(pra não dizer excesso de confiança dos adversários), o Turbina estava praticamente livre, na meia-lua...
Decidido, Fumaça correu pra bola, novamente com uma prece em mente, e bateu com convicção...
Tudo pareceu ocorrer em câmara lenta, para ele... A bola saindo do quarto de círculo, no
canto do campo (“- Me perdoa, Senhor!), descrevendo uma parábola curva (“- Um golzinho só!), e vindo
em sua direção, como a procurá-lo (“- Eu me arrependo, meu Deus!)... E ele, sentindo-se totalmente
revigorado, leve, como não se sentia há tempos, “matou” a bola no peito, “chapelou” o Montanha, que
viera tentar interceptá-lo, e sem deixar a bola tocar o solo, “fuzilou” o pobre Manteiga, estufando as
redes, numa rapidez tal que deixou todos de boca aberta!...

E o morro do Veado explodiu em verde e branco de novo! Todos se abraçavam, e
gritavam, inclusive o “Mané Português”, que, por estar sentado no banco de reservas, próximo da
bandeirinha de onde fora cobrado o escanteio, agarrara o infeliz do Fumaça, quase sufocando-o, aos
berros de: “- Eu sabia, nunca perdi a confiança nele! Nunca perdi a confiança em vocês dois!”... Apesar
de estar sem fôlego, de tão apertado, Fumaça sorria um sorriso de criança, afinal, não era sempre que seu
técnico lhe demonstrava afeto...

Depois disso, foi difícil reiniciar o jogo, para os instantes finais, mesmo porque até os
jogadores do Estrela não queriam mais saber da partida... O Diogo, aliás, não deu nem um minuto de
acréscimo, e pouco depois encerrou a contenda, momento em que tudo se repetiu: gritos, batucada,
abraços, enfim, tudo era alegria! A torcida e os jogadores do Estrela saíram “de fininho”, cabisbaixos, e
certamente cientes que não deviam mais menosprezar ninguém, principalmente alguém com o apelido de
“Pelé Sergipano”...

E o Turbina? Foi agarrado, abraçado, carregado, e tudo mais, mas não reclamou nem um

pouquinho... Chorava, sim, mas de alegria... Sentia-se um garoto! Estava leve, leve... e feliz!...

Turbina despediu-se do time naquela mesma semana... Entregou, ele próprio, a camisa que
fora sua por tanto tempo ao Pedrinho, abraçou cada um dos companheiros, agradeceu efusivamente ao
“Mané”, e saiu... Fora o último campeonato do qual participara...

Ele ainda bate sua bolinha, em companhia dos amigos, nos finais de semana... Tudo muito
informal, sem compromisso... Quem o conhece, jura que ele ainda é o mesmo de sempre: rápido,
habilidoso, um demônio!... Entretanto, muito poucos haviam percebido que, agora, sempre que ele
entrava em campo, tocava antes o solo, com a mão direita, e fazia o sinal da cruz...


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