19 fevereiro 2008

História de Abílio e seu cachorro Jupi


(Patativa do Assaré)

Vizinho a uma cidade
residia um cidadão
de alma fervorosa e justa
e um sincero coração
tendo 3 filhos consigo
Abílio, Grigório e João

Esse senhor de quem falo
chamava-se Benvenuto
votava ódio a quem fosse
ladrão, traiçoeiro e bruto
conservava no seu peito
um coração impoluto
Porém este velho mundo
é uma variedade
às vezes um senhor justo
de tanta moralidade
cria filhos desordeiros
tipos de perversidade

Foi assim que Benvenuto
bom e digno de atenção
via com grande pesar
dois filhos, Grigório e João,
praticando os negros dramas
da vala da perdição

Em qualquer parte que iam
deixavam inimizade
eram ambos odiados
da alta sociedade
foram presos muitas vezes
na cadeia da cidade

Porém como Benvenuto
era bondoso e cortês
e todos apreciavam
aquele bom camponês
depressa Grigório e João
se livravam do xadrez

O bom velho com rigor
sempre o tinha castigado
mas nunca pôde dar jeito
bem nos ensina um ditado
que quem nasce pra ser torto
tem que morrer envergado

Abílio era o caçula
tinha perfeitos sinais
em bondade e palidez
crescia de mais a mais
observando com zelo
os conselhos paternais

Cumpridor dos seus deveres
era sério e resoluto
rendia ao seu velho pai
de amor um grande tributo
era o prazer da velhice
do ancião Benvenuto

O padre da freguesia
era de Abílio o padrinho
um dia lhe fez presente
dum mimoso cachorrinho
dali em diante o menino
nunca mais andou sozinho

Esse belo animalzinho
tinha o nome de Jupi
aonde Abílio estivesse
ele se encontrava ali
como quem diz: és meu dono
não me apartarei de ti

Tinha o corpo adelgaçado
alvo da cor do arminho
e preto como veludo
dos olhos para o focinho
era o orgulho de Abílio
o tratava com carinho

Jupi às vezes que andava
ao lado dessa criança
pra filar um animal
bastava gritar-lhe: avança!
Era daquele menino
um guarda de confiança

Benvenuto se achava
muito avançado na idade
sentia muito em deixar
Abílio na orfandade
no poder dos dois irmãos
dois tipos sem piedade

Os quais com raiva de Abílio
ocultamente diziam
que quando o velho morresse
a ele maltratariam
por não guardar o segredo
dos danos que eles faziam

O velho um dia os chamou
e disse mui comovido:
meus filhos, por vossas causas
eu muito tenho sofrido
pretendo fazer a ambos
meu derradeiro pedido

– Pois vejo que agora mesmo
minha existência termino
deixando entregue a vocês
Abílio tão pequenino
peço que na minha ausência
tenham dó deste menino

– Entre as privações da vida
não deixem ele sofrer
eis o meu último pedido
nada mais tenho a dizer
guardem as últimas palavras
de um velho que vai morrer

Benvenuto assim dizia
o corpo todo tremendo
e pela face enrugada
sentidas lágrimas descendo
como a pessoa que passa
a vida inteira sofrendo

Tanto João como Grigório
ouviram com paciência
sem responderem palavra
com muita calma e prudência
porém nos olhos mostravam
a vil desobediência

Depois de dez ou mais dias
deste conselho de amor
Benvenuto agonizando
no triste leito da dor
se despedindo dos filhos
deu a alma ao Criador

Partiu desta terra ingrata
para a bem-aventurança
sua morte foi chorada
pela boa vizinhança
deixando entre os amigos
uma saudosa lembrança

Nesse dia o pobre Abílio
bastante desconsolado
chorava amargosamente
com o caixão abraçado
vendo partir para sempre
o seu pai idolatrado

João e Grigório choravam
também nesse triste dia
e passaram alguns meses
com certa melancolia
mas depois continuaram
na mesma vida de orgia

A toda sorte de vícios
viviam sempre aliados
trilhando a senda do crime
do bom caminho afastados
não havia confiança
naqueles degenerados

Saíam ambos de casa
deixando o menino ali
sem um ente piedoso
para consolar a si
só tendo por companhia
o seu cachorro Jupi

Esse fiel companheiro
não o deixava um momento
lhe festejava sincero
cheio de contentamento
pois era o único consolo
do seu grande sofrimento

Onde quer que Abílio fosse
sempre ele o acompanhava
passava o dia ao seu lado
dele não se separava
e a noite rondando o prédio
raivosamente ladrava

Grigório uma certa vez
quis a Abílio Açoitar
mas Jupi tomou-lhe a frente
e começou a rosnar
só não o estrangulou
por Abílio não deixar

Grigório cheio de raiva
com seu instinto brutal
jurou dar fim ao menino
duma maneira fatal
e com um tiro certeiro
matar aquele animal

Convidou um dia João
o seu único camarada
pra nas matas com Abílio
fingirem uma caçada
e darem fim ao pequeno
por meio duma cilada

João disse: eu aceito
de muito boa vontade
apesar de praticarmos
um ato de crueldade
mas precisamos viver
com mais franca liberdade

– Precisa grande cuidado
para prendermos Jupi
e vamos botar Abílio
muito distante daqui
entre a onça e a pantera
o lobo e o javali

Ele ficando nas matas
nunca mais há de voltar
e só assim poderemos
alguma coisa roubar
qu’ele quer ser muito justo
pode nos denunciar

Grigório muito contente
a Abílio convidou
para aquela tal caçada
ele respondeu-lhe: vou
porém daquele carinho
um pouco desconfiou

Porque Grigório com ele
só falava aborrecido
depois do funesto dia
que o seu pai tinha morrido
umas frases amorosas
não tinha mais recebido

Partiram no outro dia
Abílio ia na frente
em direção da montanha
coitado, tão inocente
e Jupi ficou atado
uivando horrorosamente

O menino caminhava
um tanto desconfiado
porque com os dois irmãos
ele nunca tinha andado
seu coração palpitava
um infeliz resultado

Os dois irmãos conversavam
ao pequenino entretendo
por entre a mata frondosa
diversas voltas fazendo
tirando o mel das abelhas
e a ele oferecendo

Ele sem saber de nada
comeu mel até fartar
mas depois de alguns minutos
começou a se queixar
duma sede insaciável
de não poder suportar

Aqueles dois traiçoeiros
de ingratidão sem desconte
lhe disseram: você fique
aqui em cima do monte
que vamos ali no vale
procurarmos uma fonte

O pequeno obedeceu
com os irmãos tinham dito
ali os dois se afastaram
deixando o menino aflito
com sede e sem companhia
naquele monte esquisito

Quando chegaram em casa
foram com muito cuidado
matar o pobre cachorro
temendo um mal resultado
mas não encontraram ele
onde se achava amarrado

– Vamos matar o cachorro:
um para o outro dizia
mas só metade da corda
no dito lugar havia
e o rastro de Jupi
para a montanha seguia




Abílio em cima do monte
não vendo ninguém chegar
de vez em quando gritava
vem, Grigório, me buscar!
Mas, coitado, não ouvia
ninguém resposta lhe dar

Ele tornava a gritar:
anda João, meu irmãozinho,
tira-me deste degredo
não deixe-me aqui sozinho
senão eu morro e não volto
porque não sei do caminho!

Andou mais de duas horas
chorando muito abatido
mas depois reconheceu
que os irmãos tinham fugido
deixando ele abandonado
naquelas brenhas perdido

Ele pensando lembrou-se
que seu velho pai dizia
que se entre as crises da sorte
ele se encontrasse um dia
recorresse à proteção
da Virgem Santa Maria

Ali mesmo ajoelhou-se
fazendo o sinal da cruz
e pediu o patrocínio
da santa Mãe de Jesus
para naquele abandono
mandar-lhe um foco de luz

E quando Abílio estava
com aflição a rezar
dentro da mata ouviu
alguma cousa pisar
pensou que já fosse um tigre
que vinha lhe devorar

Então olhou para trás
quase morto de assombrado
depois redobrou de alegre
ficou bastante animado
era o seu fiel cachorro
que vinha muito apressado

Quando viu qu’era o cachorro
afugentou-se o pavor
esse o festejava alegre
com testemunha de amor
depois escaramuçava
em roda do seu senhor

Abílio com muito gosto
deu graças à Virgem Pura
e disse: agora Jupi
dentro desta mata escura
tu serás o companheiro
desta minha desventura

Caminhou sem direção
ao lado do seu cachorro
sobre o leito dum regato
rodeando um grande morro
encomendando-se à Virgem
Mãe do Perpétuo Socorro

Com 3 horas mais ou menos
de caminhada penosa
chegou ao pé dum rochedo
de altura vertiginosa
onde encontrou uma fonte
d’água mui deliciosa

Abílio estancou a sede
que estava lhe devorando
e sentou-se em uma pedra
meditativo pensando
onde passaria a noite
que vinha se aproximando

Ao lado do seu cachorro
sua fiel companhia
deitou-se sobre uma lage
que junto da fonte havia
tomado pela fadiga
daquele inditoso dia

Só às três da madrugada
foi que despertou Abílio
sobre aquela dura pedra
que tinha por domicílio
onde só a Providência
podia dar-lhe um auxílio

Demorou mais duas horas
quando o galo de campina
saudou a bela aurora
de luz prateada e fina
ele fez ajoelhado
a oração matutina

Abílio depois da prece
chamou por seu cão Jupi
e examinando a fonte
em derredor de persi
viu que de flores silvestres
um jardim havia ali

Admirou-se de ver
ao lado daquele outeiro
aquelas plantas nascidas
semelhante a um canteiro
como se fossem plantadas
pelas mãos dum jardineiro

Depois achou no rochedo
uma medonha abertura
que continha para cima
vinte e dois palmos de altura
e tinha no rés do chão
quatro metros de largura

Tinha um amplo pavimento
aquela grande caverna
com detalhes primorosos
feitos pela mão eterna
semelhantes às obras primas
da arquitetura moderna

Abílio disse consigo:
que obra bem acabada
de hoje em diante esta caverna
há de ser minha morada
vou descontar nela os gozos
da minha vida passada

Então ficou habitando
ali naquele rochedo
passeava pelas matas
e se recolhia cedo
presente ao seu bom cachorro
nada lhe causava medo

Saía todos os dias
por dentro da mata bruta
aqui, subindo um outeiro
ali, descendo uma gruta
tirando o mel das abelhas
e colhendo alguma fruta

A tardinha ele voltava
da sua feliz caçada
tomava um banho na fonte
e entrava em sua morada
se agasalhava no centro
Jupi guardava a entrada

Muitas vezes, alta noite
Abílio ouvia ladrar
bolar pedras do rochedo
ranger dente e avançar
era o seu velho cachorro
com as feras a lutar

Pois ali bebia a onça
o lobo e o javali
mas ele continuando
a sua morada ali
as feras se retiravam
com medo do cão Jupi

Abílio ficou passando
a sua existência assim
habitando na caverna
e zelando o seu jardim
dizia ele: esta vida
lá um dia há de ter fim

De armamento ele só tinha
um canivete estimado
tendo cabo precioso
de pérola todo engastado
uma saudosa lembrança
que seu pai lhe tinha dado

Daquela pequena arma
Abílio se utilizava
para fazer suas roupas
às vezes que precisava
porque a pele da corça
era o que o pobre trajava

Quando o cachorro sentia
o desejo de comer
matava uma grande corça
comia carne a valer
e Abílio Guardava a pela
pra suas roupas fazer

Fazia mais de três anos
que aquele pobre inditoso
habitava aquelas brenhas
num estado lastimoso
era de Nossa Senhora
um devoto fervoroso

Ele sabia que a Virgem
com o seu poder clemente
domina em todo lugar
protege a qualquer vivente
não despreza o desgraçado
quando padece inocente

E assim sucessivamente
ia o tempo se passando
dezesseis anos de idade
ele estava completando
seis dos quais tinha passado
naquela cova habitando

Um certo dia bem cedo
ele despertou contente
achando o monte mais belo
a fonte mais excelente
um lindo sol de alegria
brilhava no Oriente

Uma saudosa canção
a passarada entoava
o belo jardim silvestre
doce perfume exalava
e o colibri entre as flores
esvoaçando piava

Em tudo Abílio notava
um lampejo de esperança
sobre o leito do regato
a fonte corria mansa
tudo era paz e alegria
vida, sossego e bonança

Chamou ele o seu cachorro
e saiu mui jubiloso
pela mata a caçar frutos
cheio de prazer e gozo
semelhante a quem se julga
rico, feliz e ditoso

A tardinha ele voltou
de frutos bem carregado
assim que entrou na caverna
ficou bastante pasmado
encontrou nela um letreiro
na dura rocha gravado

Aquelas letras visíveis
gravadas na pedra dura
terminavam a narração
sem deixar assinatura
disse Abílio: é um milagre
de Maria a Virgem Pura

Diz o dito letreiro:
Abílio, deixa esta vida
onde sofreste bastante
sem conforto e sem guarida
já é tempo de gozares
a liberdade querida

Chama o teu fiel cachorro
e depois da madrugada
parte em direção do norte
por esta mata fechada
que daqui a oito léguas
encontrarás uma estrada

Chegando na dita estrada
ao mesmo rumo caminha
até encontrar um prédio
onde habitava uma velhinha
a quem servirá de guia
pois ela mora sozinha

Aí nesse dito prédio
gozarás vida folgada
com a proteção divina
não há de lhe faltar
esquecendo os sofrimentos
da desventura passada

Abílio leu muitas vezes
com atenção e prudência
e achou que era um milagre
da Divina Providência
que lhe mandava deixar
aquela tal residência

Chamou pelo seu cachorro
e de manhã já marcava
para direção do norte
como o letreiro mandava
deixando aquela caverna
coito da pantera brava

Chegando ele na estrada
ficou com grande alegria
andando mais meia légua
viu ele uma moradia
era a casa da velhinha
como o letreiro dizia

Avistando a grande casa
tornou-se muito acanhado
em chegar naquele prédio
daquela forma trajado
porque a roupa do pobre
era pele de veado

mas apesar de acanhado
começou ele a pensar
a velha dona da casa
não há de me censurar
da pouca sorte de um ente
ninguém pode ignorar

Chegou na porta e falou
ficou em pé no terreiro
a velha saiu na porta
com um riso prazenteiro
e vendo ele assim trajado
pensou que fosse um vaqueiro

Ele pediu-lhe um agasalho
a velha disse que sim
então Abílio contou-lhe
tudo tim-tim por tim-tim
e ela ouviu comovida
sua história até o fim

Disse a velha: tem quem diga
que o senhor é uma tolice
mas esta noite eu sonhei
no sonho o anjo me disse
qu’eu teria um grande amparo
no fim da minha velhice

Passei a noite sonhando
então no meu sonho eu via
um moço como você
chegar nessa moradia
para no fim dos meus anos
servir-me de companhia

– Já vê que esse meu sonho
é uma realidade
gozarei paz e sossego
na minha avançada idade
e tu serás o herdeiro
da minha propriedade

Depois de muito falarem
a velha por sua vez
deixou Abílio na sala
e saiu com rapidez
trouxe um bonito uniforme
e um presente lhe fez

Dizendo: neste uniforme
grande saudade se encerra
era dum filho que eu tinha
e foi morto em uma guerra
como um soldado brioso
defendendo a nossa terra

Hoje te faço presente
deste tesouro adorado
dando mil graças aos céus
por Jesus ter te enviado
em lugar de meu bom filho
que morreu sendo soldado

Abílio sacudiu fora
o seu traje extravagante
trajando o belo uniforme
tornou-se muito elegante
e não lhe faltou mais nada
daquele dia por diante

Trajava e comia bem
dormia em paz o seu sono
tudo quanto era da velha
que se achava em abandono
desfrutava sem receio
como seu legítimo dono

Pois aquela velha tinha
herdado do seu marido
bons terrenos e dinheiro
com direito garantido
e só tinha um filho único
o qual já tinha morrido

Dinheiro e propriedade
gado, terra e animais
ela deu tudo a Abílio
com documentos legais
dizendo: no fim da vida
disto eu não preciso mais

Dizia ela: netinho
você deve procurar
uma moça competente
e com ela se casar
pois vejo que brevemente
vem a morte me levar

E você agora mesmo
fazendo um bom casamento
com minha separação
sofrerá menos tormento
ficando uma zeladora
deste tem bom aposento

Dali distante 3 léguas
em uma pobre choupana
residiam 3 donzelas
numa pobreza tirana
que só tinham o auxílio
da proteção soberana

A primeira, Dorotéia
era séria e caprichosa
a segunda, Madalena
também distinta e formosa
e tinha a bela caçula
chamada Maria Rosa

Com os conselhos da velha
Ablílio teve lembrança
da linda Maria Rosa
aquela meiga criança
com o seu riso atraente
e o seu olhar de esperança

Pensou em casar com ela
pois grande esmola fazia
tirando aquela donzela
da pobreza em que vivia
e trazendo as outras duas
para a sua companhia

Consultando com a velha
ela concordou também
dizendo: aquelas donzelas
em bondade vão além
filhas de um justo casal
duma família de bem

Abílio então desposou
a linda Maria Rosa
tirando as duas cunhadas
da pobreza lastimosa
a velha as tratava bem
de uma forma carinhosa

Com um ano e alguns meses
de tão sincera amizade
a velha caiu doente
duma certa enfermidade
indo dormir para sempre
o sono da eternidade

Abílio e Maria Rosa
Dorotéia e Madalena
vendo aquela benfeitora
deixar a vida terrena
trajaram luto penado
todos chorando com pena

Ficaram ali os quatro
na união fraternal
Abílio sempre em progresso
estava rico afinal
já era possuidor
dum imenso cabedal

Ele zelava a mulher
como bondoso senhor
e era para as cunhadas
um sincero protetor
reinava naquela casa
um ambiente de amor

O seu cachorro Jupi
aquele bom companheiro
apesar de muito velho
guardava bem o terreiro
maracajás e raposas
não boliam no poleiro

Mas infelizmente o cão
certo dia entristeceu
e daquele dia em diante
não comeu mais nem bebeu
apesar de muito trato
o velho Jupi morreu

Abílio enterrou o cão
dentro dum lindo quintal
para os corvos não comerem
aquele belo animal
que tinha lhe dado as provas
de um bom amigo leal

Já decorriam 3 anos
que Abílio havia casado
seu progresso na riqueza
cada vez mais aumentado
já se encontrava riquíssimo
em dinheiro, terra e gado

Estando ele um certo dia
na mais justa intimidade
conversando na calçada
de sua propriedade
chegaram ali dois pobres
implorando caridade

Aqueles dois andrajosos
que naquele estado implório
andavam pedindo esmolas
longe do seu território
eram João irmão de Abílio
e o outro era Grigório

Abílio os reconheceu
mas não deu demonstração
ofereceu agasalho
com a maior atenção
sentindo na sua alma
um choque de compaixão

Mandou fazer um jantar
e os convidou para a mesa
conversando alegremente
com muita delicadeza
vendo naqueles semblantes
o retrato da tristeza

Abílio disse ao mais velho
contristado e pesaroso:
desculpem minha pergunta
porém estou ansioso
pra saber aonde vão
neste estado lastimoso

Disse um: eu sou um ente
ingrato, péssimo e ruim
escute que vou contar-lhe
minha história até o fim;
sentou-se em uma cadeira
e foi começando assim:

– Nós somos dois desgraçados
não sabemos aonde vamos
mendigando o pão dos pobres
sem destino viajamos
pagando assim desta forma
um crime que praticamos

O crime foi o seguinte:
matamos um nosso irmão
o qual chamava-se Abílio
e tinha um bom coração
desde aquele dia veio
contra nós a maldição

Somos filhos dum senhor
que há muitos anos morreu
que por qualquer injustiça
castigava um filho seu
e durante a sua vida
muitos conselhos nos deu

Quando morreu o nosso pai
por causa da fatalidade
veio cair sobre nós
o peso da orfandade
ficando o pequeno Abílio
só com dez anos de idade

Ficou a pobre criança
sem conforto e sem carinho
pois nós o abandonamos
deixando-o em casa sozinho
até que um dia pensamos
em lhe dar um descaminho

Fingimos uma caçada
e assim barbaramente
bem no centro duma mata
deixamos o inocente
entregue à onça e ao lobo
à pantera e à serpente

Nós voltamos para casa
um para o outro a dizer:
agora sim, poderemos
bem descansados viver
sem um ente em nossa casa
para nos interromper

Abílio era muito belo
e por demais conhecido
até mesmo na cidade
o menino era querido
souberam logo que o mesmo
tinha desaparecido

Fomos depressa chamados
a fim de comparecermos
perante ao juiz de órfãos
alguma cousa dizermos
que com frases rigorosas
nos tratou com estes termos

Digam-me, o menino Abílio
onde é que está encerrado
que por lá diversas vezes
já tem sido procurado?
E apesar das diligências
não foi ainda encontrado

Devido a isto, vocês
estão em grande perigo
não tem a quem se queixar
este negócio é comigo
ou dão conta do menino
ou vão morrer no castigo

De descobrir o segredo
nós não tínhamos vontade
mas, debaixo do castigo
da severa autoridade
acabamos descobrindo
aquela barbaridade

Fomos presos para a mata
o menino procurar
mas nem as suas pegadas
não podemos encontrar
penso que a onça comeu
naquele infeliz lugar

Depois de muito castigo
naquele funesto dia
nos encerraram num quarto
numa horrorosa enxovia
castigo de toda sorte
ali nos aparecia

Dez anos passamos presos
durante os quais nos chegou
toda sorte de martírios
que a crueldade inventou
parece que a providência
com razão nos castigou

Quando tivemos soltura
desprezamos a cidade
andamos de porta em porta
implorando a caridade
é este o motivo justo
da nossa mendicidade

Desde que nós cometemos
aquela tal tirania
a sombra da desventura
anda em nossa companhia
o rico nos nega o pão
nos nega o pobre o bom-dia!

Quando penso no tal crime
eu de mim próprio me acanho
no mundo só vejo abrolhos
tudo me parece estranho
não há em cima da terra
um sofrimento tamanho!

A quem mata injustamente
não há nada que o arrime
pois vejo que o infortúnio
o coração nos comprime
temos que sofrer debaixo
do peso do nosso crime!

Se a morte nos visitasse
por nós seria abraçada
porque dos gozos terrenos
não aspiramos mais nada
até mesmo a nossa vida
nos parece prolongada!

Eis aí a nossa história
cheia de mil dissabores
repleta de provações
castigos dos malfeitores
orvalhada com o pranto
e a nódoa dos horrores!

Disse Abílio: pois agora
gozarão paz e conforto
eu sou o pequeno Abílio
a quem vocês julgam morto
os dois barcos sem destino
vieram parar no porto

Grigório então respondeu-lhe:
meu bom senhor o que dizes?
Não zombes da triste história
dos dois irmãos infelizes
pois trazemos como provas
do castigo as cicatrizes

Tornou Abílio a dizer:
juro com toda certeza
e como prova sincera
e declarada franqueza
olhem aquele objeto
em cima daquela mesa

Grigório viu sobre a mesa
um canivete e então
no cabo estava gravado
Benfenuto de Assunção
foi como ele acreditou
que Abílio era seu irmão

Tanto João como Grigório
por terra ali se prostraram
envergonhados do crime
amargamente choraram
e suplicando perdão
ambos os pés lhe beijaram

Abílio também chorou
com piedade e ternura
dizendo: eu os perdoei
desde a hora de amargura
que me deixaram no monte
no centro da mata escura

Vocês não me devem nada
já padeceram demais
vamos viver recordando
os conselhos paternais
com a proteção divina
e as graças celestiais

João e Grigório aceitaram
esta proteção bondosa
mais tarde com muito gosto
em uma hora ditosa
casaram com as donzelas
irmãs de Maria Rosa

Casou-se João com Dorotéia
Grigório com Madalena
o mundo tornou-se belo
a vida tornou-se amena
e nunca mais relataram
do seu drama a triste cena

Abílio mui jubiloso
sempre usava de franqueza
botou com grande desvelo
os dois irmãos na riqueza
pagando com muito gosto
ingratidão com firmeza

Aqui findo minha história
Na minha rima caipira
Toda cheia de humildade
Onde a viola suspira
No versejar não sou cego
Ilustre leitor entrego
O fruto da minha lira

Por ordem do Deus Divino
Abílio aquele menino
Teve sempre um bom destino
Arrastando a sua cruz
Tinha sobrado valor
Inocente em sua dor
Vendo sempre a seu favor
A Virgem Mãe de Jesus


4 comentários:

  1. Muito Interessante :X

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  2. emocionante!

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  3. Linda história. Adoro Patativa do Assaré e sua obra. Fantástica a assinatura dele no final do Cordel em forma de Acróstico.

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