20 outubro 2008

Posso tirar o dia livre hoje?

"O objetivo deste post não é divulgar o preconceito dos japoneses em relação aos estrangeiros, muito menos incentivar a omissão de ajuda ao próximo. Após 10 anos morando no Japão, posso afirmar que fui muito bem recebida por este povo. Esta é apenas mais uma de minhas experiências".

Por
Cristina Möller


Bem, ontem não fui à Yoga. Quando cheguei em casa estava chovendo. Bom motivo este, não? Fui dormir às 22h00 e mal sabia que daqui a algumas horas iria acordar desesperada!!
Eram 04h53, acordei com um barulho de ferro caindo, no começo foram só alguns tins-tins, depois foi aumentando. Droga! Já estava xingando, quem será que madrugou e já está trabalhando? Quem será que não tem respeito pelos trabalhadores normais, com horários normais?? Já falei que tenho o sono leve como uma pena? Então, após morar 2 anos em 45m ², no segundo andar, em frente a uma rua movimentadíssima com uma loja de conveniência aberta 24 horas por dia e ponto estratégico de motoqueiros desocupados, já dá para imaginar minhas noites em claro.

Quando resolvemos nos mudar há 4 anos, a minha primeira e única exigência seria morar em um lugar tranqüilo, de preferência no meio do mato com o King Kong. Cá estou, tenho apenas uma vizinha do lado direito (muro com muro), do lado esquerdo há uma ruela e logo uma casa com uma senhora viúva e de meia-idade. Em frente, apenas um rio (para eles), em bom português, está mais para uma vala. Nossa casa é de papel como todas as outras, não há isolamento e pode-se ouvir os menores ruídos ao nosso redor.


Depois de vários tins-tins levantei com raiva e puxei a cortina. Será que estava mesmo vendo aquela imagem? (Foto tirada do meu quarto sem zoom) Acho que antes de vê-la, de alguma forma no meu subconsciente eu já sabia. O armazém em frente a minha casa, passando a vala, estava em chamas, não apenas ele, mas também um outro depósito atrás.

Eu comecei a tremer imaginando quantas pessoas estariam vendo aquilo: NENHUMA, APENAS EU!!!! Abri a janela e comecei a gritar KAJI, KAJI ,KAJI, KAJII…, Ninguém me ouvia. Sabe nos livros, quando o assassino está atrás da mocinha e a autora descreve que de tanto pânico, ela não consegue gritar pedindo ajuda? É a mais pura verdade!! Percebi que apenas eu escutava os meus gritos. Ai meu Deus, o que fazer?? Ligar para o 911? Não burróide, isto é nos EUA!! Vi muito aquele seriado "Plantão Médico" com o George Clooney na Globo!! Você se esqueceu que aqui é "primeiro mundo”???


Os telefones de emergência já vêm gravados no aparelho! Mas a tecla 1 é para polícia, bombeiro ou ambulância? Calma, calma, raciocina! Você não pode ligar para nenhum destes números, você é Gaijin, Ausländerin, Foreigner, ESTRANGEIRAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!


Fiquei imaginando a ligação: Alô, meu nome é…moro na rua…INCÊNDIO…por favor…rápido… Do outro lado: qual o seu país de origem? Há quanto tempo mora no Japão? Seu visto é temporário ou permanente? Trabalha? Paga o seguro social? Está envolvida em alguma coisa ilícita? Qual o número do seu Gaikokujintourokoschoumeichou?
Depois de todas as respostas, e da vinda dos bombeiros, me levam para a central de Policia. O pirão encaroçou! Começam os interrogatórios: Gaijin, como você provocou o fogo? Eu?!! Não, eu apenas chamei os bombeiros!!!!!!!!!!!!!! Está pensando que estou exagerando, é? Vem pra cá!!!!

Tá, continuando…..depois de gritos abafados comecei a gritar pela vizinha da direita: SRA. HASEGAWA …NADA!!! Desci correndo, saí….olhei a temperatura externa, 4.7 graus, não estamos na Primavera? Irônico, estava chovendo!! Fui até a casa vizinha e apertei o interfone com toda a minha força, talvez pensando que soasse mais alto.


Ela apareceu no segundo andar perguntando sem entender nada: AHNNNN? Gritei apontando e fazendo mímica: Ô DENWA KUDASAI!!!! (Parece outra coisa, né?), liga por favor!!!! Talvez tirasse 10 em japonês, pois falei na forma imperativa, coloquial e polida!!! Vai te catar!!!!!!

Detalhe, o corpo de bombeiros fica a 3 minutos de carro da nossa casa. Em menos que isso começaram a chegar, aos montes, sirenes, um barulho ensurdecedor. Meu próximo passo foi ligar para o Eduardo, marido querido que justo nessas horas estava viajando. Eram 20h13 em Portugal. Precisaria digitar 31 números até alcançar seu celular e ouvir sua voz. As três primeiras tentativas foram em vão, os dedos não obedeciam ao comando do meu cérebro. Na quarta ele me ouviu.

Meu maior medo foram as explosões, fiquei apavorada com o simples fato da minha casa ser atingida. Você já pensou caso tivesse que abandonar seu lar, o que salvaria primeiro após a sua vida???? Nem me pergunte por que não sei a resposta!

Tudo bem, o pior já passou. Os bombeiros controlaram o fogo, havia uma multidão em frente de casa. O dono e empregados do armazém em chamas estavam D ÉSOLÉ. As ruas adjacentes estavam todas bloqueadas. Não vi nenhuma ambulância, graças a Deus ninguém se feriu. Estou exausta, agora são 08h42, estou no trabalho, a vida continua.



Essa postagem foi publicada originalmente em 28 de junho de 2007. Decidi republicá-la porque achei o episódio muito engraçado, apesar de tudo. Também pelo fato de mostrar um pouco das diferenças culturais e comportamentais entre brasileiros e japoneses. Cristina recentemente tornou-se mamãe. Matheus é o novo xodó da família.


4 comentários:

  1. Cristina, que narração ! Vc deveria escrever um livro de contos.

    Bjs,
    Leia o Blog da AFA novamente :

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  2. Cris, você arrasou, é emocionante a descrição dos detalhes dos fatos. Continue sempre a escrever. Um beijo, Luciana Furtado

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  3. Maravilha, meu amigo!
    Não pude parar de ler
    Até chegar ao final
    Do episódio. Pode crer!

    Gostou da quadrinha?

    Chêro no coco, no meio da fulô! Como dizia minha querida mãezinha.

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  4. Muito interessante a narrativa. Beijos e boa semana

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