23 janeiro 2011

Estudo para cordel: sertão de vaqueiros, berrantes e aboios

Por Rangel Alves da Costa*

Num sertão de mataria, de pega de boi e correria, o sertanejo quando acorda, olha o mundo e o que lhe aborda e mesmo que tudo esteja triste, pois o verde não mais existe, a seca inclemente persiste e a esperança quase desiste, ainda assim surge um alegrar, nos olhos vem um brilhar, chamando à luta pra vaqueirar.
São vaqueiros desse mundão, do destino no sertão, do café sem ter o pão, do problema sem solução, da promessa e decepção. Vaqueiros de tudo que há, desde a casinha de morar, no cercado de roçar, da vida além a lhe chamar para o rico vaqueirar. Vaqueiros de mulher e filhos, desse trem sem ter mais trilhos, da escuridão onde era brilho.

O que vejo nesse sertão chega parece ilusão, mas logo me vem na memória vaqueiros numa história, de ontem e de então. Tantos cordelistas vaqueiros, que nas terras do cordel foram os primeiros a cantar a solidão desse viver no sertão, por ter tudo e nada ter, a não ser a galhardia de aboiar noite e dia pra vida ter alegria.

Então vejo Leandro Gomes de Barros aboiando, João Firmino acompanhando, Melquíades Ferreira da Silva com o seu pavão pavoneando, João Camelo lhe desafiando, Cego Aderaldo violando, Otacílio Batista versejando, Zé da Luz apaixonado, soltando um aboio exaltado, chamando a compadria para ouvir seu novo verso, então se forma um universo de cordelistas em euforia.

Gonçalo Ferreira da Silva apressado vai chegando acompanhado de um Moreira de Acopiara exaltado. Cada um traz seu berrante, pelas costas um embornal, dizendo ter uma notícia que nunca se viu igual e espalham em todo canto tanto verso e tanto encanto que Rouxinol de Rinaré passa mal com tal espanto. E todos puderam ver, sem acreditar nem crer a nata do cordel com a chama a lhes acender.

E que nunca leu, ouviu falar ou se deu a cordel daquela altura, da mais alta literatura escrita com tanta invenção e bravura: "Sofrimentos de Alzira", “Juvenal e o dragão”, “A moça que bateu na mãe e virou cachorra”, "Antônio Silvino", “O cachorro dos mortos” "Zé Bico Doce”, "Os Cabras de Lampião", "Pavão Misterioso”, “História da princesa da Pedra Fina”, “Batalha de Oliveiros com Ferrabraz”, "Vaqueiro Damião", “A chegada de Lampião no inferno”, dentre muitos outros do cordel eterno.

Em muitos desses livretos, como versos em sonetos, o artista que é vaqueiro fala de outro companheiro, cabra mais que cabreiro, na sua arte o mais ligeiro, para mostrar que o vaqueiro da raça é o primeiro. Sertão sem vaqueiro existe não, é missa sem o sermão, é cantoria sem violão. E aquele que tange gado, pega boi desesbestado, corre em cavalo malvado, salta cerca e pula estrado, não faz só por profissão, pois além da precisão é catingueiro de coração.

O cordel canta o vaqueiro como a chama do isqueiro, dando toda importância ao sertanejo verdadeiro. Vaqueiro de pega-de-boi, de vaquejada, de estrada com a boiada, homem que corta invernada para o rebanho juntar, e vai chegar onde ele tá nem se quipá lhe furar. Vaqueiro com seu gibão, seu selim, seu alazão, seu embornal e seu chão, cara marcada pelo lanhão, necessitado de proteção na vaqueirama como missão.

Bicho conhece vaqueiro, basta ouvir o berrante e some no mato ligeiro. Treiteiro é da boiada o boiadeiro. Cada berro que ele dá não é só gado alertar, mas dizer a natureza que ela tenha a gentileza de deixar ele passar, não ponha toco no meio, deixe o cipó mais alheio e tire tudo que for feio para o cavalo passar, pois a pata que corta chão necessita do clarão da mata para avançar.

Vaqueiro que sai cedinho, fala com o sertão de mansinho, e depois de fazer carinho à natureza ao redor vai pro mundo e não vai só, pois leva o de melhor que é a esperança de voltar, por isso faz seu rezar para à noitinha avistar a filharada a lhe abraçar. E quando chega feliz, salvo que foi por um triz, vai tomar uma golada de pinga com raiz misturada, que é pro sangue acalmar, pra o vaqueiro relaxar e começar a aboiar.
E no descampado sertanejo, surgido como um lampejo ecoa um som pelo ar, primeiro vem o berrante depois o vaqueiro a aboiar. O aboio é canto triste, magoado por demais, cantado dolemetente, o vento lembrança traz, de amor e de boiada, de tudo que satisfaz.

No aboio de Seu Leonel: “Vaqueiro que é vaqueiro/ Amansa o gado e quer bem/ Todo dia vai ao campo/ E conta a boiada que tem/ Quem não gostar de vaqueiro/ Não gosta de mais ninguém/ Oh! Festa de gado! Êh, boi!”.

No aboio de Zé Preto:

“Brinco com touro valente/ Lembrando de tu menina/ Qualquer coisa de amor/ Que tu subé, tu me ensina/ Eu morro por ter respeito/ Outra coisa eu não aceito/ Que teus olho me domina/ Êi, boi!”.
No aboio que o cordelista Zé da Luz escreveu: “Minha fama de vaquêro/ Fez inveja a cantado/ Aos mais grande violêro!/ Pois se êles tinha as viola/ E trazía nas cachóla,/ O dom da impruvisação/ Eu dibáxo dêsses couro/ Tinha um violão sanôro/ Parpitando de emoção!/ O violão do meu peito/ Nas corda do coração!/Quando meu peito aboiava/ A naturêza iscutáva/ Num ato de cuntrição!”.

Ou ainda no aboio cantado por Luiz Gonzaga em homenagem ao grande vaqueiro Raimundo Jacó:

“Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Não vem mais aboiar/ Tão dolente a cantar/ Tengo, lengo, tengo, lengo,/ tengo, lengo, tengo/ Ei, gado, oi/ Bom vaqueiro nordestino/ Morre sem deixar tostão/ O seu nome é esquecido/ Nas quebradas do sertão/ Nunca mais ouvirão/ Seu cantar, meu irmão/ Tengo, lengo, tengo, lengo,/ tengo, lengo, tengo/ Ei, gado, oi/ Sacudido numa cova/ Desprezado do Senhor/ Só lembrado do cachorro/ Que inda chora/ Sua dor/ É demais tanta dor/ A chorar com amor/ Tengo, lengo, tengo, lengo.../ Ei, gado, oi!”


Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com



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